quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Chuva de Vidro


Foto de Carlos Lopes Franco

Sinto-me pequeno, minúsculo,

Um ponto indistinto na imensidão

Das coisas vãs, das coisas céleres,

Das coisas feitas, das coisas a fazer

Hoje é um dia do fim e

Os gritos que não se ouvem

São minhas feridas do tempo


Podiam-me doer os ossos ou os músculos

Mas dói-me o princípio de mim,

Dói-me lá dentro onde não chego

No quarto escuro de águas do mar,

E no pórtico acabrunhado pelo mármore

Morre uma criança descalça

Que perdera a música do olhar


Meus dedos enfastiados

Têm a dor das teclas de um piano,

No meu estômago pousou uma pedra,

Um seixo boleado pela chuva

De vidro que saltou das janelas

E invadiu a minha ausência

Que se fazia lá fora


As gaivotas que poisam no meu beiral

São rasgos de memória que bradam

Clemência aos céus estranhos,

À espera da cidade do sossego,

E meus olhos são de nenhum olhar

Porque os latidos desesperados

Ouvem-se para lá do som


A estrada é uma praia deserta

Que meus pés já não desejam,

As flores já não são da Primavera

E as pessoas são emigrantes,

Retratos distorcidos

Que se esqueceram da linguagem

Numa carroça apodrecida


Eu não me consigo mexer

Porque a carne vazia é uma pedra

Que o vento fustiga com afecto,

O silêncio é meu pensamento

Se me deixo levar pela tarde

Que nasceu no meu peito

Agora que vi que mataram o amor


João Vasco

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