sábado, 29 de novembro de 2008

O frio é meu orgão interno


Foto de Mara Mitchell

Murcharam todas as plantas que havia

E meu jardim dói na corda do sangue quente

Que abranda sua força em tons de azia

No mármore gelado de alma indigente.


Já não chove há tempo que não conto

E alastra-se a areia pela minha cegueira

Como se um deserto se fizesse pronto

Feito segredo escondido na algibeira.


Há árvores a brotar que rasgam carne

Na pressa arrastada de se nascer,

Cada ornato selvagem que me guarne

É uma vida enfeitada de apodrecer.


Trago o frio como órgão interno,

A noite é a linfa por mim como o acaso,

Em meus pulmões respira-se Inverno

E neva, neva em meu monte Parnaso.


Se me olho ao espelho não vejo nada

Espectro que se faz naquele amaro sabor

De maré baixa no cais de alma varada

Pelas adagas glaciais do funesto amor.


João Vasco

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Chuva de Vidro


Foto de Carlos Lopes Franco

Sinto-me pequeno, minúsculo,

Um ponto indistinto na imensidão

Das coisas vãs, das coisas céleres,

Das coisas feitas, das coisas a fazer

Hoje é um dia do fim e

Os gritos que não se ouvem

São minhas feridas do tempo


Podiam-me doer os ossos ou os músculos

Mas dói-me o princípio de mim,

Dói-me lá dentro onde não chego

No quarto escuro de águas do mar,

E no pórtico acabrunhado pelo mármore

Morre uma criança descalça

Que perdera a música do olhar


Meus dedos enfastiados

Têm a dor das teclas de um piano,

No meu estômago pousou uma pedra,

Um seixo boleado pela chuva

De vidro que saltou das janelas

E invadiu a minha ausência

Que se fazia lá fora


As gaivotas que poisam no meu beiral

São rasgos de memória que bradam

Clemência aos céus estranhos,

À espera da cidade do sossego,

E meus olhos são de nenhum olhar

Porque os latidos desesperados

Ouvem-se para lá do som


A estrada é uma praia deserta

Que meus pés já não desejam,

As flores já não são da Primavera

E as pessoas são emigrantes,

Retratos distorcidos

Que se esqueceram da linguagem

Numa carroça apodrecida


Eu não me consigo mexer

Porque a carne vazia é uma pedra

Que o vento fustiga com afecto,

O silêncio é meu pensamento

Se me deixo levar pela tarde

Que nasceu no meu peito

Agora que vi que mataram o amor


João Vasco

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Meu amor por ti é um traço de personalidade


Foto de Margarete da Silva

Enquanto me esmiuçava ferozmente

Por entre paredes, janelas e sóis,

Selvas, desertos e águas coloridas

Não chegava a tocar a cor dos dias,

Até que , depois de procura rebuscada,

Encontro o que não procurava

Porque nada procurava a procurar,

Dava azo à minha passada,

Lugar de perguntas incompletas,

Respostas ausentes ou discretas,

E nesta viagem que me fiz em acaso

Dou com Mar doce espraiado,

Um caudal belo de envergonhado

A roçagar-me as entranhas,

Segui esse caminho que se alastra

E desemboca na caixa de iniciação

O comboio sibilante

A que chamam coração,

Primeiro vi num canto a teimosia

À entrada estava o perfeccionismo,

Mas o que mais me espantou

Foi ver num sítio aconchegado

Meu amor por ti

Esse fresco inacabado

Já meu traço de personalidade.


João Vasco